Existe um intervalo entre o clique e a vida que ninguém mostra. Um pequeno abismo entre o que a lente captura e o que o corpo sente. É nesse espaço — entre a foto perfeita e o vento bagunçando o cabelo — que mora a verdade das viagens.
A imagem mostra uma mulher sorrindo diante de um pôr do sol em Santorini. O que não aparece é o calor insuportável, a multidão disputando o mesmo ângulo e o garçom irritado pedindo pra ninguém subir na mureta.
A legenda diz “momentos que jamais esquecerei”, mas o que ela realmente quis dizer foi “demorei 45 minutos pra conseguir essa foto sem ninguém atrás”.
O espetáculo do espontâneo
Hoje, viajar virou quase uma performance.
As pessoas não apenas visitam lugares — encenam neles. Há um roteiro invisível de poses, sorrisos e cafés estrategicamente servidos.
A “foto espontânea” é, na verdade, o resultado de uma coreografia de repetições: mais à esquerda, mais natural, mais um sorriso, agora finge que não está vendo a câmera.
E não há nada de errado em querer registrar o bonito. O problema é quando a gente passa a acreditar que só o bonito é digno de lembrança.
O lado que não cabe no feed
O Instagram nunca vai mostrar o voo atrasado, o Airbnb com cheiro de mofo, o sanduíche frio do aeroporto.
Não vai mostrar o momento em que você se perdeu, chorou de cansaço ou se sentou na calçada só pra respirar.
Mas são justamente esses pedaços imperfeitos que constroem o que chamamos de “viagem”.
As fotos mentem por omissão — não por maldade, mas porque o caos não tem filtro.
E a vida, quando vivida de verdade, quase nunca cabe numa moldura 4×5.
O valor do instante imperfeito
Anthony Bourdain dizia que “as melhores refeições são aquelas que não foram planejadas”.
O mesmo vale para as viagens: as lembranças mais bonitas não são as que saíram bem na foto, e sim as que deixaram um rastro no coração.
Desconectar-se do celular é um ato de coragem.
Olhar o pôr do sol sem filmar, saborear o café sem postar, caminhar sem pressa — é isso que transforma o turista em viajante.
Falando em Anthony Bourdain, veja abaixo algumas das nossas estampas com o saudoso chef/viajante/apresentador.



A beleza fora da moldura
Um dia, talvez, a gente volte a fotografar como antigamente: para lembrar, não para provar.
Talvez as imagens fiquem tremidas, o enquadramento saia torto, e o cabelo não colabore — mas vai estar ali, a verdade.
Porque, no fundo, as fotos mais sinceras são aquelas que ninguém tirou.
👉 Nath Souza, escrevendo da França, com o Instagram esquecisdo e o coração cheio de memórias fora de foco.
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